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Arqueologia do Saber

 

Michel Foucault, in Arqueologia do Saber, 1969

 

 

Enfim, considerando-se o que cada um quer colocar, pensa colocar de “si mesmo”no seu próprio discurso, quando tenta falar, o que há de insuportável em recortar, analisar, combinar, recompor todos os textos que agora voltam ao silêncio, sem que neles jamais se desenhe o semblante transfigurado do autor: “Como! Tantas palavras acumuladas, tantas marcas depositadas em tantas folhas de papel oferecidas a inúmeros olhares, um zelo tão grande para mantê-las além do gesto que as articula, uma piedade tão profunda destinada a conservá-las e inscrevê-las na memória dos homens – tudo isso para que não reste nada da pobre mão que as traçou, da inquietude que nelas procurava acalmar-se, e da vida acabada que só tem a elas, daqui por diante, para sobreviver? O discurso, em sua determinação mais profunda, não seria “rastro”? E o seu murmúrio não seria o lugar das imortalidades sem substância? Seria preciso admitir que o tempo do discurso não é o tempo da consciência levado às dimensões da história, ou o tempo da história presente na forma da consciência? Seria preciso que eu supusesse que no meu discurso não está em jogo a minha imortalidade? E que falando dele não conjuro a minha morte, mas a estabeleço ou, antes, suprimo toda a interioridade nesse exterior que é tão indiferente à minha vida e tão neutro que não estabeleço diferença entre a minha vida e a minha morte?

Eu compreendo bem o mal-estar de todos esses. Foi, sem dúvida, muito doloroso, para eles, reconhecer que a sua história, a sua ecónomia, as suas práticas sociais, a língua que falam, a mitologiados dos seus ancestrais, até as fábulas que lhes contavam na infância, obedecem a regras que não se mostram inteiramente à sua consciência;

eles não desejam ser privados, também e ainda por cima, do discurso em que querem poder dizer, imediatamente, sem distância, o que pensam, crêem ou imaginam; vão preferir negar que o discurso seja uma prática complexa a diferenciada que obdece a regras e a transformações analisáveis, a serem destituídos da frágil certeza, tão consoladora, de poder mudar, se não o mundo, se não a vida, pelo menos o seu “sentido”, pela simples frecura de uma palavra que viria apenas deles mesmos e permaneceria o mais próximo possivel da fonte, indefinidamente.

Reputations: Milton Glaser

 

Entrevista de Steven Heller a Milton Glaser, Eye Magazine, 1997

 

 

SH: Is historical ignorance really detrimental? Don’t we make our own historical context?

MG: When I go to school, Abstract Expressionism was in its ascendancy and most of the students began painting in that way. One of the great attractive qualities of avant-garde work is that you put yourself in a position where you can’t be easily criticised because one can always say that the critics don’t understand the new value system. One of the great attractions of doing Abstract Expressionism for a lot of ordinary kids was that they could not be judged!

SH: And the consequences of that?

MG: The consequences were very sad, because once Abstract Expressionism had passed, the adherents were thrown back on their resources, and those who were not trained had nowhere to go. I think that analogy may hold up today. The attractiveness of working in the manner of today’s expressionistic nihilism is that it looks cool and explores new territory. The bad part is that its surface qualities can be easily mastered without discipline or understanding. It celebrates the decorative and the expressive at the expense of other things.

SH: What are those other things?

MG: Structure, clarity of intent, form history – all the things one traditionally needed to make judgments. Design is about making judgements. How can you train people to judge what is good, what is bad, what is meaningful, what is fraudulent, if they don’t have the understanding of what those ideas have meant historically?

SH: How did you learn?

MG: Partially by studying history, living in Italy, learning how to draw academically. Staying curious. I also was fortunate in that my practice has been a broad one. But it hasn’t been about “effects”, and it wasn’t primarily about how things looked when you subject them to the astonishing capacity of a computer and so on.

 

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Sou um Comunista Libertário

 

Excertos da entrevista a José Saramago, María Luisa Blanco, El País, 26 de abril de 2004

 

(..)

P. Está a pensar nalgum país ao colocar esses 83 por cento de votos em branco como resultado eleitoral ou é uma crítica ao sistema global de governo ocidental?

 

R. Eu desejaria isso a todos os países, a todos, por uma razão muito simples e que parece que nunca passará pela cabeça de nenhum político, que é pensar que o sistema democrático tem dentro de si uma bomba que é o voto em branco. E a intenção não é destruí-lo, mas sim reforma-lo, renová-lo e reinventá-lo. No dia em que uma maioria de eleitores, em qualquer país do mundo, votasse me branco, a pergunta seria: que fazem agora os políticos? Que fazem agora os partidos? Até agora tudo isto tem funcionado duma maneira consensualizada, ou seja, a abstenção existe, o voto nulo existe e o voto em branco existe, mas se a abstenção é alta diz-se que estava a chover ou que o tempo era estupendo para ir para o campo ou para a praia. Os votos nulos? Sempre os ocultam, mas, e o voto em branco? Sempre se sabe que há uns quantos votos em branco, mas nem sequer valem como testemunho, porque como são brancos parece que não estão a expressar nada. Como agora é muito complicado fazer uma revolução, porque não se sabe muito bem como fazê-la, nem com que meios, e as manifestações podem-se organizar, há porções delas todos os dias, motivadas pelas causas mais honestas, mas nada de revoluções. Imaginemos agora um resultado eleitoral de 83% de votos em branco. Se isto acontecesse creio que seria uma revolução porque colocaria, sem que se disparasse um só tiro na rua, o que é que fazemos agora?

 

(...)

 

P. Você, que não teme as declarações polémicas, porque é que se situa no terreno do simbólico para fazer a sua denúncia política nesta novela? Crê que é mais eficaz?

 

R. Sim, penso que o recurso à alegoria é mais eficaz. Se eu contasse esta história de outra forma, como uma espécie de novela realista, ou como se fosse uma reportagem, não sei se teria alguma eficácia. Por outro lado, desde o Ensaio sobre a Cegueira utilizei a alegoria e a fábula como aproximação aos temas e julgo que funcionou. O Ensaio sobre a Cegueira é uma novela muito lida sobretudo pelos jovens. É incrível a quantidade de rapazes e raparigas que se aproximam de mim para me dizer que esse livro mudou as suas vidas e, se eles o dizem, por alguma será. Às vezes penso que esta novela para além de ser uma fábula é também uma sátira.

 

P. É um ataque frontal aos sistemas democrática e, falando de declarações polémicas, chegou a declarar que “a democracia é uma autêntica burla”. Como ousa fazer uma declaração tão contundente?

 

R. Como é que posso classificar um sistema que apenas me permite tirar um governo e por outro, mas não me permite absolutamente mais nada. Digo, e repito, hoje os governos não mandam. Os governos são os comissários políticos dos bancos. Não sou o único que critico isto, há muita gente que o está a dizer, o que acontece é que talvez a minha forma de o dizer seja mais explícita.

P. Faço-lhe esta pergunta porque creio que o que você diz tem uma grande ressonância…

R. Que eu me arrisco? É que não tenho consciência de arriscar muito. Inventei para mim uma espécie de autodefinição que explica a minha postura um pouco provocadora, reconheço-o, deliberadamente provocadora, claro que sim. E digo de mim: quanto mais velho, mais livre; e quanto mais livre, mais radical.

 

Entrevista a José Saramago, María Luisa Blanco, El País, 26 de abril de 2004

 

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Certos curtos sinais, entrevista a Vitor Silva Tavares

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 A zona J quer sair da redoma

 

excertos do artigo do Público,

VÍTOR BELANCIANO, 25/09/2015

 

 

[...]

Tarde de um dia de semana de forte calor no Condado, na Zona J de Chelas, em Lisboa, um daqueles bairros que são parte integrante da cidade, mas que ao mesmo tempo parecem estar à margem, numa redoma, como uma ilha. É um local aonde quem é de fora não vai por acaso ou de passagem. Tem de existir uma motivação.

Este sábado ela existe. Chama-se Zona Não Vigiada, e é festival para se desenrolar entre as 15h e as 21h no ringue de futebol da Zona J, com entrada gratuita […].

A iniciativa partiu da Casa Conveniente/Zona Não Vigiada, a estrutura teatral, ali sediada, da encenadora Mónica Calle. Com ela colabora neste festival a associação Filho Único, que, através da actividade de programação musical, ou da editora Príncipe, tem desencadeado o mesmo tipo de movimentos que nos levam a interrogar o papel das margens e do centro na produção cultural contemporânea.

 

[…]

 

“A vivência aqui é muito à base da música, nada é tão forte como ela no sentido de criar relações”, afirma Mónica Calle, “e a ideia para o festival começa um pouco aí. Por um lado interessa-nos apelar à participação das comunidades dos diferentes bairros da periferia, e é ao mesmo tempo também uma tentativa de aproximar o bairro da cidade, dando-lhe centralidade, trazendo pessoas de fora que de outra forma nunca viriam e tentando criar fluxos nos dois sentidos”.

 

[…]

 

“Não me interessa ter aqui um circuito fechado, mas pensar como fazer tráficos nos dois sentidos, interrogando o que é central e periférico. Esta não foi uma escolha casual. A vinda para cá correspondeu ao facto de o Cais do Sodré ter deixado de ser um sitio de margem e de fluxos. Era necessário recomeçar outra vez.”

Mónica Calle

 

[…]

 

Não é difícil perceber que existe um preconceito social em relação a territórios como a Zona J. O curioso é que o preconceito é devolvido da margem para o centro e existe consciência disso. Pelo menos é o que nos diz Tó, assim, sem apelido (“Todos me tratam dessa forma). Os de fora, conta, acham que ali são todos marginais, e os do bairro “não fazem questão de sair porque acham que se forem ao centro são mal tratados”.

Ou seja, quem vive no centro tende a conotar negativamente quem habita na periferia. E o cumprimento é devolvido, com os da periferia a acharem o centro confuso, conflituoso e perigoso. Uma coisa é certa: muitas das zonas periféricas acabam por ser lugares de experimentação social e cultural. Não é por acaso que em muitos países é lá que irrompe a maior parte das movimentações culturais mais arriscadas. O facto de serem por norma espaços híbridos, onde pessoas de origens e condições diversas coabitam, tanto pode originar tensão como potenciar a criatividade. Na verdade, as paisagens são cada vez mais móveis e esquizofrénicas. Na Zona J sente-se isso, tanto na paisagem humana como na paisagem urbana, principalmente nos últimos anos: o apartamento social coabita com o condomínio privado com vista para o Tejo.

 

[…]

 

Como tornar central, através de um projecto artístico, um bairro-ilha chamado Zona J, eis a questão. Uma coisa parece certa: vai levar tempo a quebrar estigmas e a superar medos, e vai ser preciso insistir. Mas é possível, dizem-no Mónica Calle e a editora Príncipe, cada uma à sua maneira. Há momentos em que a arte pode antecipar transformações sociais, ou pelo menos contribuir para as acelerar. Este sábado, a primeira edição do Zona Não Vigiada, na Zona J, em Chelas, pode ser um desses momentos. 

 

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Chelas: O que era novo e moderno ignorou

as pessoas

 

excertos do artigo publicado no blog CidadaniaLX

04/12/2011

 

 

[...]

A urbanização de Chelas teve as suas origens no início dos anos de 1960 após estudos do então chamado Gabinete Técnico de Habitação da Câmara de Lisboa. Estimava-se então que estivesse concluída em 2000. Foi pensada para acolher operários e trabalhadores da função pública, como aconteceu com Alvalade e Olivais, mas o plano não correu bem, fosse pela dificuldade de aquisição ou expropriação de terrenos, fosse pela agitação social e o fenómeno das ocupações em 1975. E ainda eclodiu a necessidade de alojar cidadãos oriundos das ex-colónias, e outros pelo início da erradicação dos bairros de barracas. Curraleira, em 2001, foi o último exemplo. A zona polarizou-se em bairros-ilha, sendo os principais Amendoeiras/Olival, Armador, Condado, Flamenga e Lóios.
Com o advento da Expo-98, o território fragmentou-se ainda mais com a multiplicação das vias rápidas de acesso ao Parque das Nações. Cortaram-se as ligações e os habitantes ficaram mais afastados das zonas de comércio e serviços. O cenário verde e idílico que a orografia e o sistema de vales propiciava ficou comprometido. "Criaram-se grandes distâncias a percorrer, com as conhecidas dependências de transporte individual e colectivo, com consequências para a qualidade de vida e ambiental", nota o historiador. 
António Baptista Coelho, do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), assume-se um "passeante inveterado que em Chelas não encontra o seu sítio - provavelmente poucas pessoas o encontrarão." "
É preciso ter a ideia de que ali se tentou fazer novo e fazer melhor, mas talvez já tivesse havido tempo de se perceber que não resultou, mas que é um sítio fantástico, com exposição solar e vistas privilegiadas", salienta o arquitecto, que lamenta tal exercício urbanístico, quando comparado com outro, anterior no tempo: "Uma das malhas urbanas mais humanizadas e naturalizadas de Lisboa e de Portugal é a de Olivais-Norte/Encarnação, onde há um percurso agradável no verde, acompanhado por vistas de janelas, uma zona pedonal que não inibe uma funcionalidade adequada dos veículos e que se integra na perfeição com actividades comerciais e cívicas, bem servido de transportes, e tudo bem desenhado, o que é fundamental." 
O também editor da revista/blogue Infohabitar acrescenta: "
Foram edifícios e espaços públicos feitos nos anos 60, mas com a sabedoria da relação com o movimento aparente do Sol. O que ali aconteceu foi ter-se feito cidade com habitação. Ainda hoje, em Chelas, estas condições não existem, pois foi feita muito para o automóvel, quando hoje as cidades estão a ser recuperadas para a pessoa, para o peão."
Para Rosa de Carvalho, "a causa do desastre de Chelas, como cidade-dormitório, radica na raiz da sua concepção errada, constituindo um laboratório de experiências sociais onde as principais vítimas são as pessoas." O historiador vai mais longe: "Este tipo de falhanços urbanísticos já começaram a ser demolidos pela Europa."

[...]

"O zonamento monofuncional de Chelas, de arquitectura baseada em modelos (escala-tipologias-materiais) errados, exercendo um efeito perverso no campo sociológico, foi ainda agravado pela falta de contacto com o exterior até aos anos 90, transformando as suas cinco ilhas isoladas num baldio", esclarece, por seu lado, o historiador.
Mas o plano com o hospital pode ser remédio? "A única tentativa que pode ser feita (missão quase impossível) é tratar cada uma das zonas independentemente, e desenvolver em cada uma delas, uma aproximação a uma pequena cidade - ruas, comércio, praças, centros cívicos, pontos de referência e identidade", diz Rosa de Carvalho.
António Baptista Coelho adverte que há em Chelas "excelentes peças de arquitectura habitacional". E cita o arquitecto Manuel Taínha, na revista Arquitectura e Vida, de Março 2000:" É mais do que tempo para regenerar, reabilitar, reconverter, preencher e requalificar Chelas, e, quem sabe, o tempo que passou nos permita fazer ali uma intervenção tão sensível e adequada, como estruturalmente reabilitadora da realidade que ali se vive."

 

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Lisboa Capital do Nada

Marvila 2001

Criar, debater, intervir no espaço público

 

 

No inicio do séc.XX, Franz Kafka, num dos seus almofariz, afirmava qualquer coisa como isto: Quanto mais cavalos atrelares a um bloco de pedra, mais depressa conseguirás. Pode ser que não sejas capaz de move-lo, mas é possível que as correntes se partam e obtenhas um passeio alegre e vazio. Extra)muros(, a equipa que realizou Lisboa, Capital do Nada poderá não ter movido a pedra, mas sentirmos-nos numa espécie de suspensão de gravidade, experimentamos um certo tipo de leveza. Mas o que foi (é) Lisboa Capital do Nada?

 

Capital do Nada, uma introdução

por Mário Jorge Caeiro

 

Lisboa Capital do Nada foi um evento cultural transdisciplinar que decorreu em Lisboa, entre 1 e 30 de Outubro de 2001. 

Trinta dias de eventos diários incluida os núcleos Projectos Estruturantes, Arte, Fotografia, Edição e Debate, Intersecções e Outras Actividades, coordenados por uma equipa responsável por mais de quarenta colaboradores.

 

Houve pessoas que entenderam o evento como um “festival”, outras olharam-no como uma oportunidade para empreender um “workshop” colectivo, que para além disso revelou ainda características de “arte urbana”. Todas estas formas adquiridas foram no fundo maneiras de exercitar um campo de conhecimento na área do desenho urbano, que se poderia descrever como um “auscultador” do corpo citadino através de um conjunto alargado de ferramentas, umas estritamente académicas, outras culturais.

 

Definindo-se pela abertura às mais variadas interferências durante as diferentes fases do seu processo e, acima de tudo, pela vontade e conhecer o Outro, nomeadamente o outro territorial e vivência, Lisboa Capital do Nada tentou fugir à lógica de padronização da sociedade de afluência, burocratizada, institucionalizada, pesada. Lisboa Capital do Nada abriu um parêntesis na vida de pessoas a quem nunca nada é perguntado e tentou fazê-lo trazendo essas pessoas à participação no processo, à discussão dos grandes e pequenos tópicos de trabalho, à apresentação dos seus próprios valores num contexto de alguma projecção mediática. Da mesma forma, designers, arquitectos e artistas, assim como representantes das diversas ciências envolvidas foram chamadas a intervir de forma pessoal, eticamente responsável, intervenção no âmbito da qual era possível haver aprendizagem, partilha e negociação. Constituíram-se equipas, em grande medida informais, onde criar, debater e intervir no espaço público era o objectivo fundamental, num processo filosófico e inquisitivo à semelhança do da “natalidade”de hannah Arendt. 

 

(…)

 

O projecto acabou por ser uma ode às coisas como elas são, ou seja, passíveis de serem mudadas, isto é, chamou os seus públicos e os seus colaboradores pela positiva e não numa lógica de confronto directo com problemáticas delicadas.

 

Empregando recursos modestos e uma atitude discreta, Lisboa Capital do Nada procurou contribuir para que o design, as artes plásticas e disciplinas afins frequentem lugares que muitas vezes temem pisar. Não é de lugares físicos que falamos, mas dessa instância de criação em que os limites entre intervenção artística, conhecimento técnico, sentido ético e envolvimento afectivo se desvanecem em favor da ideia de uma cidadania activa e participada. A atitude inerente ao projecto foi de imediato entendida pelo Presidente da Junta de Freguesia de Marcial, que assumiu a co-produção e o ónus do protagonismo. Foi o presidente e a sua equipa que estabeleceram áreas prioritárias de análise, cederam informação e meios essenciais, envolveram instituições, empresas e personalidades locais.

 

 

"Lisboa, Capital do Nada" já mexe me Marvila

 

Excertos do artigo do Público

Fernando Ribeiro, 14/08/2001

 

 

 

[...]

Mas "Lisboa, Capital do Nada" faz-se de projectos múltiplos. Todos eles tentam, seja através de intervenções na paisagem de Chelas, ou de eventos culturais, chamar a atenção para este território, que aos de fora parece vazio de imagem urbana - desagregadoras que são as novas vias que o cruzam, passando ao lado de urbanizações dispersas, às quais falta continuidade no planeamento. A assinalar os eventos haverá "Portas para o Nada", como a que foi concebida pelo arquitecto Samuel Roda Fernandes, uma instalação tridimensional a instalar num baldio, ou numa zona incaracterística de transição entre o rural e o urbano. Haverá também "Autocarros do Nada", apoiando as movimentações das pessoas entre o casco velho e o casco novo de Marvila, e infocentros, pontos onde se pode obter informações sobre as actividades previstas.Transformar esta metáfora do nada num acontecimento urbano, que envolva as populações de Marvila e de outras zonas da cidade em formas de comunicação participativas, é o objectivo de "Lisboa, Capital do Nada".Tudo começou há já alguns meses, por ideia da Extramuros, Associação Cultural para a Cidade, criada há um ano com o objectivo de promover eventos no espaço público e suscitar debates sobre questões de cidadania. Anunciado em Maio passado, no Parque da Bela Vista, "Lisboa, Capital do Nada" tinha já então elaborados alguns projectos estruturantes, delineados por gente de fora da freguesia - antropólogos, geógrafos, arquitectos, urbanistas e artistas plásticos -, mas cedo começou a gerar expectativas entre a população local. Pensado como um evento cultural contínuo de 1 a 30 de Outubro, terá agora de ser algo mais, por exigência dos que já nele estão envolvidos."Agora, é a própria população que exige que isto não pare depois de Outubro. Os 'graffers' com quem temos estado a trabalhar já nos avisaram: isto tem de continuar, se não volta tudo ao mesmo", conta Mário Caeiro, da associação Extramuros, a quem cabe a concepção do projecto.E com a expressão "voltar ao mesmo" quer-se dizer ao mesmo alheamento, à mesma separação, entre os que são de Marvila e os que são de fora. Fruto dessa exigência, nasceu já um outro projecto, "Que futuro para o Nada?", uma interrogação através da qual a associação Extramuros se compromete a continuar a reunir-se com a população e com os apoiantes da iniciativa no centro municipal da Flamenga, uma vez passados os tempos de festa.Outro sinal de que o projecto mexeu com as pessoas traduz-se na apresentação de ideias pelas colectividades e associações da freguesia. "A Associação Marvila Jovem está ela própria a ir buscar gente e a trazê-la para o projecto. Agora foi um músico daqui, que não conhecíamos. O Nada já descobriu muita gente boa", salienta.Junto das onze escolas da freguesia também já houve uma boa recepção da ideia, que foi apresentada aos conselhos directivos, de fazer um "workshop" com as cinco mil crianças que frequentam aqueles estabelecimentos de ensino. "Como gostaria que fosse a cidade inventada?" é a questão colocada os miúdos, segundo um projecto que conta com a participação do psicólogo Carlos Céu e Silva.Numa espécie de "Sim.City", pede-se-lhes que imaginem que iam criar uma cidade a partir do nada. "Qual seria o nome?", "O que farias nela em primeiro lugar?", "O que é que não punhas na tua cidade?", "Quem escolherias para lá viver?" e "Quem não levarias para lá?" são algumas das questões às quais os miúdos irão responder.Nas respostas surgirão porventura algumas achegas ao projecto geral, que pretende criar a oportunidade de estimular a urbanidade e criar novos públicos culturais.

Chelas - um outro bairro

 

artigo do Público,

Vasco Franco, 07/08/2002

 

 

Em crónica publicada no PÚBLICO (05/08/02), um membro da associação de moradores do Bairro dos Lóios interroga-se sobre quem seria responsável pela escolha das cores com que tem sido pintado o Bairro do Condado (que o autor do texto insiste em chamar "zona J"). Diz ele que "Chelas e mais propriamente a zona J não mereciam mais isto"...Começo por estranhar a indignação tardia, como eco de declarações recentes do actual presidente da câmara... O Bairro do Condado está a ser pintado com aquelas cores há quase quatro anos, na sequência de um processo de reflexão participado pela junta de freguesia e pelas duas associações de moradores daquele bairro. Desde o início das obras e até ter deixado de ser responsável (fui eu, confesso!) por esta área, recebi uma única carta de protesto por causa das cores. Sei que o assunto tem merecido algumas referências, a favor e contra, em debates sobre a temática da habitação, mas não me chegaram outras críticas consistentes.Não foi uma decisão fácil, como fácil não terá sido, a diferentes decisores, aprovar outros projectos do arquitecto Tomás Taveira. Mas a verdade é que alguns desses projectos marcaram a cidade e, passada a controvérsia, aí estão, nos manuais de arquitectura, nos guias urbanos e nos bilhetes postais, como símbolos em que Lisboa também se revê. Convidei o arquitecto Taveira para estudar as cores por ter sido ele o autor do projecto inicial. Aceitei o risco da proposta porque me pareceu interessante o "diálogo" com a colina fronteira, nas Olaias - com cores muito vivas, hoje esbatidas pelo tempo -, mas, igualmente, por pensar que o "choque" provocado ajudaria a exorcizar os fantasmas da velha "zona J". Continuo a acreditar nisso... Ainda em recente entrevista a um jornal, uma das pessoas que mais autoridade tem para falar do Condado, frei Franco Ghezzi, afirmava que o bairro está a mudar muito e não tem comparação com a má memória do passado. Ele, que ali vive e trabalha, há muitos anos, com a população mais carenciada.Quando, em 1990, iniciámos a gestão em que participei, Chelas era um gigantesco gueto de realojamento, sem acessos, sem equipamentos, com milhares de barracas em bairros que se chamavam "do Relógio", "da Flamenga", "dos Cravos", "Chinês". Doze anos depois, Chelas está ligada à cidade de uma forma excelente (prolongamento da Av. D. Rodrigo da Cunha, Av. do Santo Condestável, viaduto das Olaias e prolongamento da Av. dos Estados Unidos da América); no lugar das barracas tem casas condignas, um campo de golfe, uma parte do parque da Bela Vista e infra-estruturas viárias de ligação entre os diferentes bairros da zona; múltiplos equipamentos (centro comercial, escolas novas, esquadras de polícia, centros para crianças, jovens e idosos, pequeno comércio, bibliotecas, mais farmácias, e até um instituto universitário no Bairro do Condado); uma população mais diversificada, com centenas de fogos cooperativos e também de promoção privada... Os diferentes bairros passaram a ter nome próprio, em vez das letras que eram "marca registada" da segregação. No Condado desapareceram os passeios de alcatrão e as pracetas de terra batida, substituídos por arranjos exteriores de grande qualidade, como desapareceu a "Vila Miséria", buraco nas fundações de alguns lotes onde viveram dezenas de pessoas durante largos anos...Com excepção do Parque das Nações, nenhuma outra zona de Lisboa beneficiou de um investimento tão significativo na década de 1990 (onde não deve ser esquecido o metropolitano, que construiu duas estações em Chelas).No meio de tudo isto, a única decisão polémica foi a das cores do Condado? Sinto-me um "idiota" feliz! O que espero é que um dia os habitantes do Bairro do Condado possam considerar-se tão segregados como os cidadãos que diariamente utilizam as Amoreiras... Vereador do PS na Câmara de Lisboa e ex-responsável pelo pelouro da Habitação

 

 

 

Imagens do Bairro do Condado, Chelas

 

08/2004

imagens retiradas daqui

 

N.W.A

O Grupo Mais Perigoso do Mundo

 

excertos do artigo da Blitz nº112, Outubro 2015

 

 

(...)

"Em Compton e South Central, nos anos 1980, era mais fácil encontrar uma Kalashnikov do que um emprego, e o tráfico de crack, os gangues e a polícia - sob o comando militarístico do chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles, Darly F. Gates - estavam descontrolados". "Era preciso ver porque fazíamos aquela música", explicou Ice Cube a Brian Hiatt. "Não era apenas por sermos pretos jovens e revoltados de South Central...mas porque fizemos aqueles discos? Vivíamos no meio do tráfico de droga, dos gangues, da brutalidade policial, da porcaria de Reaganomics e não havia por onde escapar".

 

(...)

 

"Verifiquei que o que estava a acontecer na Macola era o mesmo que se tinha passado com o rock and roll em 64 e 65"

[Jerry Heller em declaração ao NME, 2006]

 

(...)

 

"Ninguém sobrevivia nas ruas sem uma máscara protectora. Ninguém sobrevivia nu. Tinhas que ter um papel. Tinhas que ser "durão", "engatatão", "atleta", "bandido", ou "traficante". Caso contrário só te sobrava um papel: "vítima"".

 

[Jerry Heller, in Ruthless: A Memoir, 2006]

 

(...) 

 

A Rolling Stone enumera as razões que fizeram de Straight Outta Compton um albúm histórico: o facto de "ter antecipado a chegada do domínio do gangsta rap"; a criação,com Eazy-E "do arquétipo do dealer-de-droga-tornado-rapper, uma capa que muitos já vestiram desde então, de Jay-Z a Migos"; "a preparação do caminho para The Chronic, Snoop Dogg e Tupac Shakur"; o facto de ter inspirado "filmes como Boyz n the Hood e de ter chegado a milhões de míudos brancos dos subúrbios sem compromissos"

Em 2005, Bakari Kitwana defendia no seu livro Why White Kids Love Hip Hop (ed. Basic Civitas Books, Nova Iorque, 2006), que "a verdadeira história da América pós-1970 é a história do abandono da juventude" e argumentava que o hip-hop se tinha imposto como um corpo moral alternativo à educação formal oferecida pelas escolas: "acredito que o hip-hop tem oferecido uma resposta ao irresponsável abandono dos jovens neste país" O discurso de Kitwana era um discurso de otimismo, que defendia o hip-hop como uma alavanca de transformação social, capaz de equipar futuras gerações de polícias brancos com uma maior sensibilidade às questões raciais que tanto têm abalado a América. Ice Cube, na já citada peça recente da Rolling Stone, afirma que o mítico "Fuck The Police", tema em que canta "so the police think/ they have the authotity/ to kill a minority", foi escrito com 400 anos de atraso: "todos os anos havia 1000 Rodney Kings de que não ouvíamos falar e só agora com as novas tecnologias é que temos podido testemunhar estas porcarias com que os pobres têm tido que lidar desde sempre - e é isso que torna o nosso filme [Straight Outta Compton] relevante hoje em dia"

(...)

 

Os N.W.A continuam a tocar num nervo de uma sociedade ainda não resolvida, com tensão racial nas ruas e vozes como a de Donald Trump a ameaçarem levar o próximo governo para terrenos pantanosos. 

 

 

 

Fuck The Police, N.W.A, 1988

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João Mário Grilo: "Não merecemos a revolução que tivemos"

 

Entrevista a João Mário Grilo, in Visão, Julho de 2010

(sobre o filme Duas Mulheres, 2010)

 

Em certas cenas parece que privilegia mais frieza do que

as emoções?

 

É uma geometria. Há sempre uma projecção de uma geometria que vem do contacto com as prisões. Filmei muito em prisões, que têm muito de geometria. Há uma emanação carceral dentro do filme, as pessoas estão presas dentro do filme, há grades do consultório, o paciente preso, outras grades que se projectam... Isso pauta o filme. É visual, é impossível que as pessoas não as sintam, apesar de não terem consciência. Eu sou muito alemão na maneira como filmo. O cinema alemão dos anos 20 é o cinema com o qual me identifico. A referência do Rohmer é também um cineasta com o qual me identifico, para além do cinema alemão. Aproximei-me bastante de Rohmer, gosto daquele espécie de indiferença que é importante para não deixar as pessoas indiferentes.

Porquê aquela quantidade de planos de Lisboa?

Porque tem a ver com essa ideia da cidade como ecrã, onde é projectado um filme em que as pessoas tem de assumir o papel de personagens ou de figurantes. Depois há os que são figurantes mas querem ser personagens, andam sempre em bullyng. A tarefa do cineasta é extrair o filme que corre na realidade. O Miguel Ângelo dizia a estátua está na pedra: o que o escultor faz é tirar toda a pedra até aparecer a estátua que já lá estava. Esse é o grande trabalho, os neo-realistas conseguiram extrair o filme que estava na realidade no pós-guerra. E neste filme, quando digo que quero tomar o pulso das coisas, é um bocado isso. Não é por acaso que a personagem principal deste filme é uma médica, que procura perceber que realidade lhe está a chegar ao consultório. A cena inicial está toda organizada para fazer essa contraposição. A médica que pensa que está fora do real, dentro do seu consultório, onde está o branco e a luz. E entra uma personagens dos antípodas: a Mónica.

O hotel também tem aquela geometria... A arquitectura no filme tem muita importância, da casa onde vivem, de onde a médica viveu,  a própria natureza é filmada como arquitectura.

 

Consultar artigo completo aqui

É preciso que uma imagem se transforme no contacto com outras imagens, como uma cor no contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo, de um azul. Não há arte sem transformação.

 

Robert Bresson, in Notas Sobre o Cinematógrafo

Unknown Track - Unknown Artist
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Yumeji's theme, In the Mood for Love

 

No filme In the Mood for Love, de Kar Wai Wong, 2000

Consultar sinopse aqui

 

 

Reunindo planos completamente distintos, estes podem readquirir um sentido que isoladamente não possuíam. No limite, o plano não significa nada em si mesmo, uma vez que o sentido só se estabilizará na relação/associação com outras imagens.O filme não reproduz uma realidade, cria a sua realidade.

 

Lev Kuleshov (sobre o Efeito Kuleshov)

 

6

Walden ou a Vida nos Bosques

 

Henry David Thoreau, 1854, EUA

 

 

A absoluta simplicidade e o despojamento da vida que o homem levava nos tempos primitivos tinham pelo menos a vantagem de deixá-lo ser hóspede da natureza. Quando se sentia retemperado pelo alimento ou pelo sono, tinha a estrada novamente diante de si. Morava neste mundo como se fosse numa tenda e estava sempre palmilhando vales, cruzando planícies, galgando cumes de montanha. Mas vejam só! Os homens transformaram-se nos instrumentos dos seus instrumentos. Aquele que na maior liberdade apanhava os frutos nas árvores quando sentia fome, tornou-se agricultor; o que se deixava ficar debaixo de uma árvore por abrigo, transformou-se em caseiro. Já não acampamos durante uma noite, instalamo-nos na terra esquecida do céu. Adoptámos o cristianismo como se se tratasse simplesmente de um método de agricultura aperfeiçoado. Construímos para este mundo uma mansão familiar e para depois da morte um jazigo de família. As melhores obras de arte do homem exprimem a luta para libertar-se desta condição, mas o que resulta da nossa arte consiste apenas em tornar confortável este estado inferior e fazer-nos esquecer do outro mais elevado.

Universalism

 

The Whole Earth/ California and the Disappearance of the Outside Exhibition

A project in the framework of the "Anthropocene Project 2013/2014” at Haus der Kulturen der Welt 

 

 

What was arguably the most impressive demonstration of American power at the height of the Cold War gave rise to a momentous image: the photograph of the Blue Planet. This picture of the Earth became a global icon, one that, for the last time in the late twentieth century, would come to symbolize a Utopia. At the level of universalistic imagery, at least, the Cold War was decided. The Blue Planet seemed to provide, from the world of media‐circulated images, symbolic confirmation of Wernher von Braun’s dictum that hegemony on Earth would be determined by the control of space.

But the photograph of the Blue Planet didn’t remain the mere trophy of a world power; it also set in motion a global environmental movement and bore witness to a new age—one marked by a global unity directed against the current rulers and their exploitation of the planet. The physical, visible Earth warned against its own endangerment through environmental destruction and war. The image showed a planet capable of overcoming old demarcations in favor of a new connectedness, and that held the promise leaving behind national and ideological conflicts.

The image of the Blue Planet reverses the relationship between interior and exterior space. As the expansive view into outer space turns 180 degrees, it focuses back in on the planet from which it was originally cast. The planet now appears as the horizon of our view, and is paradoxically both that which we behold and the place from which we behold it. It appears to us as a complete entity upon which we can gaze from outside, then shows us as a part of a system in which all things are interconnected. It calls forth a new planetary consciousness, an awareness of the “big picture.” The Earth as a whole has moved into the field of a new and permanent visibility and is now part of a global, media‐defined present.

The power of the Blue Planet as an icon was enough to displace another image that had defined the global situation after 1945: the mushroom cloud. This photograph of a nuclear explosion had carried forward a memory of the emergence of a new world order from the Second World War. The omnipresent Cold War threat of nuclear holocaust was heightened by the memory of the catastrophic connection between modern technology, mass psychology, and the terror of fascism. The atom bomb confronted us with the destructive power of modern societies and their technology. If no image was capable of representing the evil of the Shoah, the mushroom cloud filled that void and stood as an icon of absolute dread, one that was soon integrated into everyday life as an image of the absolute limit of civilization. At the same time, the atom bomb served as a symbol of Western civilization’s on going claim to power—legitimized by modern science’s universal claim to truth and driven by the ideology of progress. Despite being a product of the space age, which continued, undaunted, under the banner of science and progress, the Blue Planet photograph appeared to break with this ideology and its historical frame of reference.

 

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Memories of Drop City

 

John Curl

Excerto de "Memories of Drop City", Capítulo 8 

Referente à vida em comunidade + interior e exterior das comunas: massificação do media

 

 

I don't want Drop City to became some kind of elitist club", Clard blurted. 

"This tension is destroyng us," Curly replied. "Rabbit is making us just like the straight world. We're becoming like them. If Rabbit don't leave, the whole thing's gonna die."

"I can't stand it whene a group gangs up on some poor little sucker."

"Rabbit ain't no poor little sucker. He's probably up in his dome reight now writting to all the word what a paradise we have here, at the same minute that he's killing it."

"I'm not going to demonize him," Clard said. "I don't want enemies. When there was just you and me, Curly, we saw each other as the enemy sometimes. Remember? If we didn't have Rabbit, we'd be at each other's throats again, or at Lard's or Ismael's. It's just the low side of human nature. When I'm alone I'm my own enemy."

9

7.

 

Marcuse's Legacies

 

Prefácio de Angela Y. Davis para The New Left and the 1960's: Colleted Papers of Herbert Marcuse, edição de Douglas Kellner

 

 

 

"Like philosophy, (critical theory) opposes making reality into a criterion in the manner of complacent positivism. But unlike philosophy, it always derives its goals from present tendencies of the social process. Therefore it has no fear of the utopia that the new order is denounced as being. When truth cannot be realized within the established social order, it always appears to the latter as mere utopian. This transcendence speaks not against, but for, its truth. The utopian element was long the only progressive element in philosophy, as in the constructions of the best state and the highest pleasure, of perfect happiness and perpetual peace. The obstinacy that comes from adhering to truth against all appearances has given way in contemporary philosophy to whimsy and uninhibited opportunism. Critical theory preserves obstinacy as a genuine quality of philosophical thought."

 

This is one of my favorite Marcuse passages: utopia and philosophical obstinacy. Obstinacy is certainly a quality that drives those of us who call ourselves veteran radicals, but not obstinacy in the sense that we need to hold on to obsolete theories, ideas and organizing practices, rather the obstinacy of maintaining that emancipatory promises are still entangled in the terrifying and ever-expanding system of global capitalism.

This obstinacy is most productive, I believe, when it travels from one generation to the next, when new ways of identifying those promises and new oppositional discourses and practices are proposed. In this context, I want to acknowledge the important intergenerational character of this conference, In a passage from the introduction to an "Essay on Liberation” that many of you - old as well as new Marcuses scholars - have probably committed to memory, Marcuse writes that,

 

“what is denounced as “utopian” is no longer that whicg has “no place” and cannot have any place in the historical universe, but rather that which is blocked from coming about by the power of the established societies. 

Utopian possibilities are inherent in the technical and technological forces of advanced capitalism and socialism: the rational utilization of these forces on a global scale would terminate poverty and scarcity within a very foreseeable future.”

 

Whole System, Whole Earth: The Convergence of Technology and Ecology

 

in twentieth Century American Culture”, William Harold Bryant, 2006

 

 

 

Like Darwin’s theory of natural selection, the refiguration of Earth in terms of
whole systems — the biosphere, the ecosystem — had the effect of integrating humans into the natural history of the planet. While plant communities and animal populations could be studied at a distance, without necessarily even raising the question of their relation to people, it was an unavoidable fact that humans were themselves enmeshed within ecosystems and inescapably a part of the biosphere. But at the same time, humans were not merely another component of these systems. They were also, according to Vernadsky, elements of radical planetary change, bringing about an entirely new global, evolutionary state, which he called noosphere, the sphere of mind. And in the case of the ecosystem, Tansley conceded that it was in a fundamental sense an artificial construct, a convenient conceptual “isolate”. In fact the surface of the planet was so completely of a piece, there was no real way to delimit one ecosystem from another. In the case of both the biosphere and the ecosystem, humans were thoroughly inside, with the rest of the living and nonliving matter, but at the same time always curiously outside as well. This dual, contradictory location of humans, l will argue throughout this study, is characterstic of the whole system model of nature that emerged in the twentieth century.

Lisboa Capital do Nada

Marvila 2001

Criar, debater, intervir no espaço público

 

"Território do Nada" - dispersão vs utopia… 

 

Passo a citar Teresa Alves: “Entre as diversas formas de organização do espaço que emergem dos novos contextos globais, salientam-se formas territoriais que se caracterizam pelo vazio, pelo nada, mais material do que simbólico, mas que podem encerrar potencialidades e oportunidades únicas como a criação de um sentimento de comunidade através da mobilização das populações de forma a que estas reivindiquem o espaço público como um bem colectivo de promoção qualidade de vida”.

 

Esta abordagem teórica ao território em geral tinha de ser adaptada ao espaço escolhido para fazer o Nada: Marcial. Aí, num processo dinâmico, enfrentou cada problema - com os meios disponíveis e a sua capacidade de adaptação à leitura progressivamente mais profunda que ia sendo capaz de empreender. 

 

Num território disperso como é Marcial, “era muito difícil não operar com a mesma dispersão. Perante inúmeras rupturas, não era possível sequer costurá-las. Tamanho vazio não poderia ser por nós preenchido”. (Daniela Brasil)

As premissas iniciais do trabalho talvez não tivessem sido estas, mas foi assim que os visitantes e até colaboradores acabaram por viver aquele espaço. Com todas as suas dificuldades e incongruências, visitar o Nada seria visitar um território nu, sem roupas ou maquilhagem.

 

Se Marvila é este descontínuo entremeado de presentes incertos e futuros expectantes, o imediato é um lugar de fortes traços milticulturais, onde o futuro poderia oferecer espaço para construção da metrópole que Lisboa - por timidez ou falta de ousadia - ainda não é. Marcial tem esta dimensão de potência, e esta é uma possibilidade física, como em poucas grandes cidades contemporâneas. Por tudo isto, o lugar ofereceu-se-nos como espaço ideal para levar à prática, nem qua apenas por um mês, uma utopia transdisciplinar, um “acontecimento urbano” tal como foi apresentado à opinião pública.

 

9.

 

António Pinto Ribeiro, Cidade e Política Cultural, Agosto de 2002

 

 

A cidade contemporânea é um work in progress. Com as suas obras permanentes, com a alteração veloz da sua composição e combinação social, com migrações contínuas, a crescente circulação de pessoas e bens. (…) O que é interessante, na diversidade de estímulos que as cidades produzem, é que a estrutura das cidades resulta da combinação entre o planeado urbanisticamente, de raiz cultural ou religiosa, e a irrupção de decisões individuais ou de grupo feita pelos habitantes da cidade. E a diversidade dos perfis das cidades, que são o que determina que as mesmas possam construir memórias culturais mais ou menos pertinentes, é algo que resulta das práticas culturais dos cidadãos na relação de tensão ou de empatia com as suas cidades. 

12.

 

Reactor entrevista Aurelino Jaime Ceia

 

in reactor-reactor.blogspot.com, 29 de Outubro de 2008



AURELINDO JAIME CEIA: A minha formação é uma coisa um pouco peculiar, onde cabem várias passagens, desde uma deambulação por arquitectura durante um ano e meio, uma viagem a diversas casernas militares com despacho para África durante quase quatro anos, depois artes plásticas nas Belas-Artes, um ano de psicologia no ISPA, até, finalmente, aterrar em Design de Comunicação em 1975 (já um homenzinho, portanto), curso que acabei cinco anos e muitas folhas de Letraset depois. 

Como digo algures, o curso na ESBAL dava os primeiros passos e íamos todos, professores e alunos, navegando em ondas improváveis de mares nem sempre conhecidos. Fomos fazendo o curso em conjunto, com as mesmas aflições e as mesmas alegrias, numa relação na altura muito produtiva entre o design, as outras grandes artes e as teorizações exuberantes que a liberdade recente (Abril) nos pedia (agora está tudo muito trancado nos seus quartinhos tristes de Bolonha…).
Em Portalegre, onde nasci, chegavam-nos ecos, distantes mas concretos, de outros mundos. Pelos quinze, dezasseis anos ia integrando imagens complacentes da história da pintura, do cinema (cineclubismo), da arquitectura, dos livros. Comprei os “Almanaques” todos (Sebastião), tinha peneiras com a cultura (um intelectual amargo, em certa medida um cliché anti-salazarista), o que dava um certo jeito à minha introversão natural. José Régio foi meu professor, com 17 anos comprava o Herberto, a cidade encravava-se entre os penhascos de S. Mamede e a distância das searas…

De qualquer modo, mais tarde, já em 75, alguns dos mestres que tive na ESBAL (falo, por exemplo, do Jorge Pinheiro, do Zé Brandão, do Rogério Ribeiro, do Lagoa…) abriram-me para a novidade e para a inquietação dos processos da comunicação e da sua possível dinâmica poética e social. O mundo do design vai-se-me formando como um desejo e, em certa medida, uma utopia. 
O conhecimento da “geração SNI” faz-se por caminhos diferentes. No entanto, olhei sempre para aquilo como história envernizadora do Estado Novo. A estética das exposições, do folclore estilizado e dos cartazes turísticos tocava-me pouco. Mas as linguagens da pintura, do cartaz, do desenho, da própria arquitectura vão ganhando densidade, no confronto com os modernos mais inquietos – Sebastião Rodrigues e Victor Palla à frente – como o Sena, o Daciano, o Portas e também, por via destes, toda a Bauhaus e outros estrangeiros (Rand, Lustig, Glaser, Bass, Corbusier, Aalto…), sempre caldeados com as expressões pictóricas contemporâneas, mas tudo através de coisas reproduzidas, livralhada – um bocado “museu imaginário” à la Malraux. Uma razoável caldeirada bastante típica. 

A “carreira” como designer é que não é nada típica. Comecei a fazer umas coisas para a área cultural ainda como aluno na ESBAL. Quando acabei o curso vim para aqui dar aulas (até hoje) e estive uns meses no atelier do Zé Brandão, com quem fui aprendendo as agruras da produção. Depois, sozinho, fui arranjando uns clientes patuscos, gente que acreditava que o design gráfico podia salvar o mundo e que era porreiro ser eu a tentar fazê-lo à borla! Safei-me depois numa série de trabalhos para a área da arqueologia (profissionais com quem dá gosto trabalhar, devo dizer), IPPAR, Museu de Arqueologia, para além de algum trabalho para autarquias (uns sujeitos sempre com muito pouco tempo para pensar as coisas por dentro).


R. : Foi um dos primeiros alunos do Curso de Design das Belas Artes de Lisboa. Que memória guarda desse início do ensino do Design em Portugal?

A.J.C. : O início do ensino do design em Portugal, pelo menos na ESBAL, foi, para mim, uma coisa muito estimulante. Talvez pelos meus atavismos, estimulante porque um bocado instável, agarrada a uma diversidade

de linguagens plásticas, numa procura inquieta, às vezes bem disposta, outras contraída. O design como problemática, como ensino,

era absolutamente urgente em Portugal. Claro que o governo via a coisa, tal como hoje, como um mero catalizador dos negócios, mas a verdade

é que se discutia então nos jornais e em um ou outro forum

não só esta sua dimensão, mas também o design como a possibilidade

de uma linguagem digamos artística. Com o 25 de Abril a oportunidade da criação das licenciaturas é agarrada pelos cabelos na ESBAL

(eu andava por lá, pelas artistices). 

Aquilo baseava-se vagamente nuns modelos de algumas escolas estrangeiras, uma de Cuba, a velha Bauhaus, alguns princípios racionalistas de Ulm – e a coisa era de tal ordem que, dos 5 anos,

o primeiro era comum aos quatro cursos (pintura, escultura, comunicação e equipamento), no segundo ano escolhia-se uma de duas vertentes, artes plásticas ou design, e só no terceiro ano

é que nos instalávamos então com armas e bagagens na área específica

de licenciatura. Podias sair, no final do terceiro ano, com o bacharelato. Parecia curto… A verdade é que estes três anos eram decisivos na criação de uma cultura e de uma prática integradas, que nos dois anos finais, constituíam um bom lastro.

Por outro lado, o 25 de Abril de 74 vem provocar uma quebra

no caminho do design, nomeadamente do industrial, porque enquanto no curto consulado de Caetano alguma cultura da necessidade

se instalara em relação ao desenho e à produção, Abril leva os cartolas

a mandar parar as máquinas, dá-se a descapitalização de muitas empresas e mesmo a fuga de capitais e o boicote deliberado a um certo “desenvolvimento”. Os patriotas! Mas é neste ambiente (que, por outro lado, convocava à festa e à expressão por vezes comovente das energias até então amordaçadas), que se desenvolve o ensino. Os próprios professores estão muitas vezes à rasca e daí nascia, digamos,

uma cumplicidade. As fragilidades davam-nos força e eu, digo

com convicção, fartei-me de aprender coisas novas, às quais me dediquei com entusiasmo. Só um bocado mais tarde é que aparece o arraial

das privadas e aí o ensino do design entra mesmo numa crise

de identidade que está a dar cabo disto.​

14.

 

Sem medo

 

por Vasco Câmara, 22/09/2000, in Público

 

Em "Noites", a primeira longa-metragem de Cláudia Tomaz, João e Teresa são dois amantes suspensos no tempo da heroína, numa Lisboa de túneis e viadutos, vista a partir do Casal Ventoso. João é João Pereira, fora do écrã, um toxicodependente em recuperação que Cláudia Tomaz encontrou no Casal Ventoso. Teresa é a própria Cláudia,

em entrega total à ficção.

O que mete medo em "Noites" é ele ser um filme sem medo. Mesmo as ingenuidades do projecto, porventura as suas fraquezas, têm a mesma origem: a disposição tenaz de cumprir, do primeiro ao último fotograma, um trabalho de amor.O que é que pode meter medo em "Noites"?

É uma história de droga, de heroína, mas o que se vê, o Casal Ventoso

ou o interior de uma casa que serve de refúgio a um par toxicodependente, João e Teresa, não é nada que não possa ser imaginado (ou que possa ser ultrapassado, em termos de figuração,

por "No Quarto de Vanda", o documentário que Pedro Costa rodou

no bairro das Fontainhas e em que Cláudia Tomaz trabalhou

como assistente).Mas já nos faz vacilar sentir que essa história,

esse tempo que imobiliza o espaço ou esse espaço, uma Lisboa irreconhecível, que está fora de tempo e que não regista impressões

nos sentidos das personagens, não foram inventados apenas para João

e Teresa. São pedaços da vida de João Pereira e Cláudia Tomaz,

ele o "actor", ela a "actriz" e a realizadora. Cláudia Tomaz mergulhou,

e esse desafio, que tem algo de sacrificial, só é relevante - para dizer

que "isto é um filme" - porque estava ali uma câmara e, sobretudo, porque havia a vontade destemida de chegar a alguém através

dos planos e do tempo do cinema. Esse alguém, antes de ser o público

de uma sala é João Pereira. Cláudia encontrou João no Casal Ventoso quando fazia o "casting" para o filme. Esse encontro provocou

uma mudança no projecto, que passou a ser escrito pelos dois.

A relação entre eles levou-a a interpretar a personagem de Teresa.

É aí que "Noites" é profundamente perturbante: pela intimidade, pela exposição da cineasta. Face a ela, João Pereira, aquele que foi encontrado no Casal Ventoso, é que é o intérprete. É ela - a cineasta, que todos

os dias via passar, da segurança de sua casa em Campolide, o cortejo

de "outcasts" em direcção ao Casal - que parece ter sido expelida pela realidade. É uma inversão em nome dos sentimentos que, perversamente, afasta de forma radical o filme da ficção e o coloca num lugar mais inclassificável, perto da experiência de laboratório íntima ou da

auto-vampirização em nome do afecto - perante isto, falar nos limites

da "moral" e da "ética" é absurdo; afinal, foi a realizadora/intérprete

que deixou a sua pele no filme.Cláudia precisou de estar à altura

do que João sentia e experimentava, por isso foi Teresa. E foi para

ele, para ele falar, que filmou aquela sequência do "túmulo a céu aberto", que é visualmente espantosa - a hipótese do paraíso reencontrado, depois da anulação dos sentidos na cidade - mas que não precisava daquele monólogo dele a explicitar o que o silêncio do filme já gritava.

Ou será que precisava? Não provém tudo da mesma dádiva? Não foi essa sequência, no limite, a razão de ser de todo o filme - para João "poder falar"? Estaremos sempre de fora, contudo, condenados a sentir que

essa sequência é um excesso."Noites" não pretende "congelar"

uma experiência do passado. É um documento ao "vivo" não sobre

a vida de dois toxicodepentes de Lisboa, mas sobre um encontro através do cinema. Olhe-se para o olhar de Cláudia, no primeiro plano, em que João e Teresa atravessam um túnel em Alcântara. Olhe-se depois para

o olhar de Cláudia, como ele se vai desviando progressivamente

de qualquer objecto para se concentrar no vazio que lhe sobra

da experiência enquanto Teresa. É um filme, paradoxalmente, romântico: Cláudia Tomaz acreditou que "Noites" podia ser uma oferenda.

Pode dizer-se que não se parece com nada que tenha sido feito

no cinema português. É uma experiência solitária, uma balada agridoce do "underground", um "filme junkie" como não se via desde os anos 70,

e em que se confundem a mitificação e a catarse pessoal. Foi rodado

no centro do medo. Mas isso é o que, aparentemente, vamos também ficar condenados a sentir neste momento do cinema português: que "Noites", ou "No Quarto de Vanda", de Pedro Costa ou "O Fantasma",

de João Pedro Rodrigues não se parecem com nada.

São filmes sem medo.

 

 

Umberto Eco: "No momento em que todos

têm direito à palavra na internet, temo-la

dada aos idiotas"

 

por José Céu e Silva, 24/05/2015, in Diário de Notícias

 

Está satisfeito com o estado da linguagem atual?

 

Estar interessado na linguagem também quer dizer que se é um crítico constante da linguagem. Acredito que o italiano permite dizer tudo

o que se quer, mas há uma maioria de pessoas que emprega mal

as palavras e a lista de clichés impressos nos jornais é uma espécie

de espelho paralelo ao estado da linguagem. 

 

Confia no que lê nos jornais?

 

Eu vejo as notícias na televisão mas nos jornais leio principalmente

a Opinião. Quanto aos enganos que se encontram na imprensa, percebo que resultam da obrigação de encher muitas páginas. Até porque reparo que mesmo os jornais muito importantes se enganam.

 

(...)

 

Acredita que há futuro para a imprensa tradicional?

 

Não sei, porque também houve um tempo em que se dizia que a bicicleta iria desaparecer e tal não aconteceu, pois agora vejo toda a gente

a pedalar. Há uma redescoberta contínua de certas práticas consideradas em perigo, tanto assim que me dizem que o único setor editorial que está em crescimento é o da literatura infantojuvenil. O que vejo

é que as crianças ainda gostam de folhear os livros e reparo

que cá em casa a primeira coisa que o neto faz é ir ver os livros.

Não liga aos jogos ou à televisão, portanto as novas gerações poderão continuar a ler e a querer tocar nas páginas de papel, bem como deixar os restos de bolos colados às páginas e reencontrar essas marcas

na velhice, coisa que não se encontra numa pen ou num disco rígido.

 

(...)

 

Considera ser necessário controlar a internet?

 

Isso é uma situação impossível de fazer nos tempos em que vivemos,

o que se deve é ponderar o que fazer desse universo. Há quem já tenha dito, e acho que tem razão, que se nos anos 40 houvesse internet não teria havido campos de concentração como o de Auschwitz porque toda

a gente teria tido conhecimento. No entanto, no momento em que todos têm direito à palavra na internet temo-la dada aos idiotas, que de outro modo nunca seriam lidos noutro sítio.

 

Alerta para os campos de concentração mas hoje temos situações trágicas com os imigrantes do Mediterrâneo ou os que fogem da Líbia ou do Mali e isso não se evita.

 

Isso é outra questão, a informação banaliza os acontecimentos.

Dou um exemplo: a primeira vez que se viram na televisão imagens

de uma criança negra cheia de fome e com moscas a rodeá-la foi

um momento marcante, só que agora já ninguém lhes liga devido

à vulgarização. Alguém no outro dia proibia a divulgação de imagens dessas crianças negras com moscas à volta porque a sua repetição

era perigosa. As pessoas habituam-se.

 

Critica a demasiada informação?

 

O problema da internet é que produz muito ruído, pois há muita gente

a falar ao mesmo tempo. Faz-me lembrar quando na ópera italiana

é necessário imitar o ruído da multidão e o que todos pronunciam

é a palavra rabarbaro. Porque imita esse som quando todos repetem rabarbaro rabarbaro rabarbaro, e o ruído crescente da informação

faz correr o risco de se fazer rabarbaro sobre os acontecimentos

no mundo. Haver muito ruído é o outro grande problema da informação contemporânea e esse é um dos temas do meu romance: cada uma das personagens não era problema, mas todos juntos faziam demasiado barulho. Portanto, deve-se evitar muito ruído informativo.

 

Repetiu o que Dante disse um dia sobre as bibliotecas ocuparem

o lugar de Deus. Ainda acredita nisso? 

 

Isso está na parte final da Divina Comédia. Via-se Deus como a biblioteca das bibliotecas e a soma de todos os saberes possíveis. O que eu disse foi uma formulação metafísica, até porque é impossível ler tudo o que existe nas bibliotecas.

 

ler artigo completo aqui

 

Alphabet of fishes, por Bob Cobbing

 

 

 

 

A arte da pirueta

 

por José Machado Pais, 21/09/2011, in P3

 

(...)

Recentemente, tenho acompanhado a actividade de jovens produtores

de histórias aos quadradinhos.

 

Capacidade de conectar ideias

 

O que tenho constatado é que a sua criatividade se baseia numa capacidade – feita de astúcias e sagacidades – para interconectar ocorrências, circunstâncias, ideias, oportunidades.

Da mesma forma que a banda desenhada é uma arte sequencial, também as trajectórias dos jovens exploram sequências que atingem,

por obliquidade, inesperadas consequências.

O agir da obliquidade, que é próprio da criatividade e do saber interpretativo dos mundos ficcionais das histórias aos quadradinhos,

e que Fernando Pessoa já contemplara na sua poesia interseccionista – em "Chuva Oblíqua" (Orpheu), "Paisagens Oblíquas" (Livro do Desassossego) ou "Oblíqua Madrugada" (Ode Marítima) –,

parece ser uma estratégia que está a ser explorada por jovens que, empreendedoramente, procuram profissionalizar a sua criatividade.

Se assim for, poderemos estar perante uma nova corrente sociocultural onde se destacam valores de autonomia, improvisação, criatividade, "expertise", expressividade e ludicidade. Tenha-se em conta que, para os pais de muitos dos jovens de hoje, possuir uma carreira profissional significava deter uma identidade estável e reconhecida.

 

O desafio de hoje

 

Em contrapartida, as carreiras profissionais são actualmente feitas de percursos ziguezagueantes, variáveis e indetermináveis.

Os jovens de hoje confrontam-se com o desafio de se adaptarem a circunstâncias de vida mutáveis – o que pressupõe uma capacidade de ajuste, um domínio da arte da pirueta, um saber caçar oportunidades, uma mão cheia de perícias para ultrapassar a contradição entre a calculabilidade e a qualidade do fortuito.

Para Mannheim, as gerações inscrevem-se numa dinâmica histórica que favorece a aparição de grupos de jovens que se diferenciam radicalmente dos seus antepassados.

Os jovens constituem uma geração de mudança quando ela própria é produto e motor de mudança. Estaremos num ponto de viragem para novos rumos societais?

 

John Cage abou Silence

 

 

14

 

 

Design and Violence

 

Moma

 

Design has a history of violence. It can be an act of creative destruction and a double-edged sword, surprising us with consequences intended

or unintended. Yet professional discourse has been dominated by voices that only trumpet design’s commercial and aesthetic successes.

 

Historically, designers’ ambitions have ranged from the quotidian

to the autocratic, from the spoon to the city. Under the guise of urban renewal or the cliché of disruptive innovation, designers of all kinds

—from architects and typographers to interface, product, and fashion designers—have played a role in the reconfiguration of ways of life, ecosystems, and moral philosophies. Although designers aim to work toward the betterment of society, it is and has been easy for them

to overstep, indulge in temptation, succumb to the dark side

of a moral dilemma, or simply err.

 

Violence, on the other hand, is one of the most mutable constants

in history. It accommodates myriad definitions, spanning a wide

spectrum between the symbolic and the real, and between the individual

and the public. In recent years, technology has introduced new threats and added dramatically to its many manifestations. Our exploration

of the relationship between design and violence will shed light

on the complex impact of design on the built environment

and on everyday life, as well as on the role of violence

in contemporary society.

 

As we define it, violence is a manifestation of the power to alter circumstances, against the will of others and to their detriment. We have assembled a wide range of design objects, projects, and concepts that have an ambiguous relationship with violence, either masking it while

at the same time enabling it; animating it in order to condemn it;

or instigating it in order to prevent it. Almost all were designed after 2001. We see that year as a watershed because it marks four historical shifts

in the modern evolution of violence: the beginning of a permanent War

on Terror; a global shift from symmetrical to asymmetric warfare;

the emergence of nation-building as an alternative to military supremacy; and the rise of cyberwarfare. The few exceptions—the AK-47, for instance—are archetypal examples of the entanglement between design

and violence in the 20th century.

 

ver artigo completo aqui

 

AK-47 (Mikhail Kalashnikov)

ver artigo sobre este objecto pelo Moma aqui

 

 

Serpentine Ramp (Temple Grandin)

ver artigo sobre este objecto pelo Moma aqui

 

 

The Story of Co-Design

por Thinkpublic

 

 

It's Not Mine, It's Ours, 

Susana António, ver artigo aqui

 

 

Entre Imagens - João Tabarra

RTP 13/05/2014

 

 

Archive

Thomas Demand, 1995

 

 

Room

Thomas Demand, 1994

 

 

 

 

Thomas Demand: Making history - with paper

 

BBC Culture entrevista oartista Thomas Demand

 

Viewers seeing Thomas Demand’s photographs for the first time might

not realise their significance. Lacking any explanatory text when

they are displayed in galleries, the images show empty places

with no identifying detail. Looking at a conference room filled

with debris, the viewer might not recognise it as the location of a failed assassination attempt on Hitler; they could miss the fact that a slightly shabby kitchen is one where the Iraqi dictator Saddam Hussein cooked his last meal before his capture in 2003.

 

These pictures are not what they seem: Demand creates model replicas of scenes out of paper and cardboard, before photographing and destroying them, leaving only an eerie facsimile of a real place. (...)

 

BBC Culture: What made you first reconstruct famous images, like the bathroom where the German politician Uwe Barschel was found dead?

 

Thomas Demand: When I started making photographs of other people’s photographs, which were mainly from the media, I tried to reprivatise

an image of the world and the meaning of the world with very simple means. To reprivatise our idea of that part of the world – most of these parts I have never been, and I will never get to – because, for example, Saddam Hussein’s kitchen is probably not there now. But it was the world for me – the same way the tunnel in Paris where Diana died was

the world for me.

 

BBC Culture: Why did you reconstruct the room in which the final assassination attempt on Hitler took place?

 

I was studying at Goldsmiths College [in London] at the time, and I started thinking ‘who am I here, and where am I coming from’ – some stupid student thoughts – and I remembered this picture, which would probably define me more than I want, on the one hand, and on the other hand, it would be what other people wanted me to be – ‘be the good German, know that you have to stand up against things when you know that they’re wrong’. We all have these images which are supposed to have an educational impact on us, and I thought: ‘What if I actually visit this, rebuild my own version of it so I can be there and have a look at it?’

 

ver artigo completo aqui

 

Kitchen

Thomas Demand, 2004

 

 

15

 

 

E outra coisa?

 

Rui Tavares, in 17/08/2015, in Público

 

Para a política ser outra coisa, seria bom que os políticos e quem

os aconselha começassem por se lembrar que “os portugueses”,

essa massa mais ou menos indistinta a quem eles ostensivamente

servem mas que parecem não valorizar por aí além, são portugueses

e mais do que isso. Os portugueses são estudantes e trabalhadores, desempregados e empresários, pais e mães, avós e netos.

São ou foram emigrantes e — já agora — muitos dos que fazem

Portugal não nasceram cá.

 

Ontem foi a rentrée política e lá nos serviram mais um prato

de mesmo com mesmo. A menos de dois meses das eleições legislativas,

a grande pergunta é se a política pode ser mais do que isto ou se devemos conformar-nós à ideia de que, após umas semanas perdidas

a discutir cartazes, é possível que os discursos de Paulo Portas e Passos Coelho — após quatro anos

de governo — tenham sido de um vazio tão confrangedor

que os comentadores de serviço se vêem aflitos para encher

os intermináveis minutos de televisão que lhes dão.

 

Sim, eu sei. Já há muito que a política portuguesa se tornou

nesta coisa previsivelmente coreografada em que, mesmo quando

há um assomo de conteúdo, o que se passa a mais das vezes não sai do “fulano acusa sicrano de pôr em causa x ou y”, “sicrano responde

a beltrano devolvendo as acusações sobre fulano”. A que se deve isto? Em primeiro lugar, é mais fácil: há espaço para ocupar, e isto ocupa espaço sem arriscar nada. Em segundo lugar, os políticos e quem

os aconselha acha que “os portugueses” não querem ou não precisam mais do que isso. E, em terceiro lugar, por desconfiança: estamos de tal forma habituados a esta forma desidratada

de política que ficamos de pé atrás se nos propõem que

a política seja outra coisa.

 

Para a política ser outra coisa, seria bom que os políticos e quem

os aconselha começassem por se lembrar que “os portugueses”, essa massa mais ou menos indistinta a quem eles ostensivamente servem mas que parecem não valorizar por aí além, são portugueses e mais do que isso. Os portugueses são estudantes e trabalhadores, desempregados e empresários, pais e mães, avós e netos.

São ou foram emigrantes e — já agora — muitos dos que fazem Portugal não nasceram cá.

 

Mais surpreendente ainda: os portugueses têm princípios, valores

e ideais. São libertários ou conservadores, progressistas ou liberais, religiosos ou seculares, um pouco mais disto ou um pouco mais daquilo — mesmo quando não usam essas palavras. Como é natural em gente que tem umas ideias e gosta de pensar sobre as coisas, gostaríamos que nos falassem à nossa visão do mundo — ou no plural: às nossas visões do mundo — e que nos dissessem ao que vêm e de onde vêm.

 

Poderia continuar, mas para ficar somente por aqui: os portugueses também são europeus e cidadãos do mundo, ou habitantes deste planeta. A Europa está a viver uma das suas grandes crises e temos

o direito de saber quais são as propostas partidárias para o futuro

de uma União onde Portugal deve ter estratégia e posição — e nós devemos poder escolher quais são. E apesar de erradamente

se achar que isto são contas do rosário de outros, os políticos portugueses não estão impedidos de nos dizer o que pretendem fazer (se alguma coisa) sobre as alterações climáticas ou a crise

dos refugiados, a CPLP ou a reforma da ONU.

 

Quem achar que não merecemos mais do que esta míngua de ideias em que já se está a tornar esta campanha eleitoral não merece,

na verdade, o nosso voto. E sim, é para preencher este vácuo que se deve participar no debate público. Na próxima crónica, começaremos pelo estado da economia e da política globais, quando a crise se aproxima já de uma década de duração, e ganha novas geografias.

 

 

 

 

Portugal um país de classes: Polarização e Vulnerabilidade, por Renato Miguel do Carmo

 

João Mineiro, 01/02/2014, in Observatório das Desigualdades

 

 

De facto, como argumenta Vasco Ramos, defender que existe hoje uma geração jovem com menos direitos e qualidade de vida que

a geração anterior esconde, por um lado, que quer na geração mais velha, quer na geração mais nova, existem indivíduos e grupos com condições de vida e de trabalho muito diversificadas, e esconde, por outro lado, que as situações de precariedade laboral e estabilidade

na vida já afetam tanto as gerações mais jovens como as mais velhas. Contudo, parece-me que a autoidentificação de uma “geração à rasca” pode resultar de uma mudança profunda nas expectativas sobre

as instituições. Esperava-se que o mercado, o estado e a economia proporcionassem as condições de mobilidade social que permitissem aos jovens concretizarem as suas expetativas de vida e de trabalho.

A verdade é que há hoje uma parte muito considerável da geração jovem que se confronta com um desemprego muito elevado, com níveis de precariedade crescentes e que viverá pior que a geração

dos seus pais. Talvez por isso fosse interessante explorar a hipótese de que a mudança de expetativas sobre as instituições tem alimentado um sentimento de pertença geracional muito acentuado.

 

Num capítulo importante sobre a relação entre as classes sociais e a cidadania política, Tiago Carvalho argumenta que os atuais protestos contra a política seguida não representam um aumento da confiança ou da participação política mas refletem sim uma distância à política. Não duvidamos, seguido a linha de argumento, que a um posicionamento de classe desfavorecido corresponde tendencialmente um aumento do distanciamento em relação aos centros de decisão e poder. Mas seria talvez interessante explicar a outra dimensão do fenómeno. É que à medida que estes novos movimentos formulam uma crítica muito acérrima ao sistema político encontram também, em si mesmo, diversas formas de participação política e de organização coletiva. Não me parece pois que se verifique um distanciamento em relação à política, mas um afastamento em relação à política institucional e aos centros legitimados de poder.

 

Mas se a crise de 2008 nos convoca para um debate fundamental, em Portugal continuam a ser visíveis indicadores de desigualdade que vêm de muito antes dessa data. Portugal contínua a ser uma sociedade marcada por uma assimetria na distribuição de rendimentos que, como Margarida Carvalho refere, se têm traduzido numa polarização cada vez maior entre as remunerações de trabalhadores. Essas transformações têm levado a uma compressão dos grupos de ganho intermédio, ou como Frederico Cantante argumenta, numa magreza considerável das classes médias. Fenómenos complexos, numa sociedade que, como Pedro Abrantes demonstra, apesar de historicamente atrasada em relação à Europa, continua a lutar pela valorização dos seus trabalhadores à luz das suas experiências e conhecimentos de vida.

 

O Design social em questão: entrevista

com Joana Bértholo

 

Joana Bértholo, em entrevista a José Bartolo

 

Até que ponto um trabalho tem de ser contextualizado quando se abordam questões como a fome, a inclusão social, desequilíbrios económicos, ainda hoje tão prementes? Nesse sentido, é interessante explorar uma intemporalidade...

Artigo completo aqui

 

 

 

15

Desrespeito

 

José Luís Peixoto, 13 de março de 2016 in Notícias Magazine,

 

Como se distinguem as pessoas que não merecem respeito? Uma resposta clara a esta questão teria muita utilidade, ajudaria a avaliar a legitimidade das faltas de respeito.

 

Nas redações da catequese e nas conversas sobre o boletim meteorológico, toda a gente merece respeito. No mundo real, não é assim. Hoje, o desenvolvimento tecnológico permite-nos novas formas de desrespeitar os outros. As formas antigas não perderam atualidade, continuam disponíveis para os nostálgicos, mas acrescentaram-se muitas outras, mais confortáveis e eficazes para quem desrespeita.

 

Ao contrário do que Salazar apreciava, "respeito" não é sinónimo de "obediência" ou "submissão". "Respeito" é sinónimo de "consideração", s. m., é aceitar que os outros, independentemente de se concordar ou não com eles, têm o direito de existir.

 

Desrespeitar é negar o direito de existir, desrespeitar é uma forma de aniquilação moral. As diferenças entre desrespeito e opinião são muito mais concretas do que as apologias do desrespeito querem fazer crer. O desrespeito começa por ser um sentimento e, só depois, se exprime em palavras ou ações. Quando não é gratuito, o desrespeito nasce de uma dor: em algum momento, o desrespeitado lembrou o desrespeitador de algo que o incomoda em relação a si próprio. Nesse caso, o desrespeito é uma resposta. No entanto, não tem a ver com a pessoa a que se dirige, com aquilo que ela é, tem a ver com a imagem construída por aquele que desrespeita, tem a ver com aquele que desrespeita.

 

Ainda assim, hoje, vende-se o desrespeito muito barato. Desrespeita-se os outros em troca de uma gargalhada murcha, de um semi-sorriso, da convicção vaga de que esse desrespeito será identificado como inteligência e perspicácia. Independentemente da gratificação em causa, o desrespeito é sempre egoísta, é sempre um sinal de narcisismo e de vaidade.

 

Neste tempo, o desrespeito é também um sinal da crise. Há quem desrespeite como modo precário de vida. O mesmo desespero que leva jovens licenciados a estágios não remunerados e a call centers, leva muita gente ao desrespeito. Uns e outros acreditam que, aí, conseguirão encontrar alguma coisa que os salve do nada que vislumbram à sua volta.

 

Em qualquer dos casos, o desrespeito é uma agressão. O desrespeito é sempre uma agressão.

 

 

 

Região Fantasma / o massacre de há um século ainda assombra a Turquia e a Arménia

 

Paul Salopek, A Jornada do Homem, parte 5, in National Geographicmagazine, Abril de 2016

 

(...)

Quando termina oficialmente um genocídio? 

Será que isso acontece quando os mortos desaparecem, individualmente, da cadeia da memória humana? Ou quando a última aldeia esvaziada adquire nova população, novo idioma, novo nome? Ou será que fica selado, em última análise, quando o remorso se instala?

Eu e o meu guia caminhamos lentamente rumo a norte. Palmilhamos as estepes onde os lobos fogem diante de nós, fazendo pausas para nos olhar por sobre as espáduas, em silêncio, antes de retomarem o trote. Passamos pelo monte Ararat. O cume brilha a leste, esbatido a branco de neve. A bíblia vincula a montanha ao ponto de altitude elevada onde Noé ancorou a sua arca. O belo vulcão é sagrado para os arménios. Segundo uma errada interpretação popular, os padres apostólicos arménios até usam chapéus com o formato cónico do pico do Ararat. Em Agosto de 1834, o metereologista russo Kozma Spassky-Avtonomov escalou o cume gelado da montanha. Ele imaginou que poderia ver as estrelas brilhando à luz do dia. A sua expedição foi a perfeita demanda anatólica: Kozma tentou ver aquilo que ainda era invísivel. Esta é uma paisagem assombrada pelas ausências.

(...)

A fronteira encerrada entre a Arménia e a Turquiaé uma das mais estranhas demarcações do mundo. Em 1993, a Turquia fechou as travessias terrestres por solidariedade com o Azerbeijão, devido à guerra em Nagorno-Karabakh. O lado arménio também permanece vedado, em parte por causa das pressões exercidas pela diáspora contra a normalização das relações com a Turquia. Com resultado, as estradas que atravessam esta encruzilhada histórica do planeta não se dirigem a nenhuma parte. Há uma estação ferroviária por onde não circula uma locomotiva há 22 anos. Um funcionário sonolento varre os escritórios da estação, enquanto os carris vão apodrecendo em silêncio. Uma companhia aérea voa efectivamente entre a Arménia e a Turquia, a partir de um escritório banal em Erevan. Por consequência, as economias dos dois países ressentem-se. As pessoas de ambos os lados da divisória ficam separadas, isoladas, mais pobres.

O exército russo guarda o lado arménio da fronteira com a Turquia, ao abrigo de um pacote de defesa mútua. É assim que Moscovo mantém a sua influência nesta região estratégica. O panorama é surreal: rolos de arame farpado arménio, torres de vigia russas e postos de controlo fronteiriço dão para campos abertos na Turquia, que desmilitarizou o seu lado da fronteira há muitos anos. Os soldados russos e arménios fazem frente a pastores turcos. Os pastores acenam.

"Mantenho sempre acesso o fogo na minha cozinha", conta Vahandukht, uma arménia de rosto corado cuja habitação rural se localiza mesmo junto do arame farpado, do outro lado de Ani. "Quero mostrar aos turcos que ainda cá estamos".

Trepo até um local panorâmiâco, junto de sua casa, onde os autocarros dos peregérniinos arménios param. Estes turêim stas vêaqui contemplar, com nostãaolgia, do outro lado da vedação, a sua antiga capital na Anatólia. Olho também para lá vejo o lugar exacto onde estive, meses antes, quando visitei a Turquia. Um fantasma do meu antigo ser deambula pelas ruínas. Nada nos separa, a todos nós, a não ser um imenso golfo de solidão.

 

 

 

Um Homem chamado Vidal

 

Luís Sepulveda, in As Rosas de Atacama

 

Quando Jorge Icaza publicou Huasipungo, os senhores da terra, a Igreja

e os opulentos do Equador escandalizaram-se com o terrível enredo do romance, mas nenhum latifundiário, padre ou empresário deu mostras de comoção perante o panorama de exploração, humilhação

e extermínio de que foram e são vítimas os camponeses, os índios

das serras andinas do Equador, Peru e Bolívia. Estive pela primeira vez

no Equador em 1977 e a realidade continuava a ser a mesma descrita por Icaza: gente sem direitos, gente sem recursos, gente sem outro amparo além da noite fria e silenciosa, porque a escuridão permitia

que contassem uns aos outros as suas ambições e os seus sonhos.

E nesse ano conheci Vidal.

Lembro-me de que eu estava sentado numa tasca de comidas

de mercado de Cayambe e, enquanto dava conta de um saboroso porquinho-da-índia na brasa, reparei num homem que se aproximava sigilosamente dos camponeses, dos índios que se ofereciam como carregadores, e lhes falava quase ao ouvido e, aos que não se afastavam a toda a pressa, entregava um dos panfletos que, como um prestidigitador, retirava das dobras do poncho.

Ouviu-se de repente um ruído de apitos, de passos a correr, e o mercado foi invadido pela polícia. O homem puxou o chapéu para os olhos

e caminhou para a saída mais próxima. Ao passar ao meu lado, parou

ao verificar que também estava bloqueada por homens fardados.

Olhou rapidamente para trás e os nossos olhos encontraram-se, porque uma formidável lei da vida faz com que os lixados deste mundo

se encontrem. Ele era persegido e eu começava um exílio de longos anos. Sentou-se à minha frente, pegou na garrafa de cerveja que estava

em cima da mesa e, depois, de beber um longo gole, começou a falar

de frangos. Segui a corrente dele e, quando os polícias passaram

ao nosso lado conversámos em linguagem de peritos acerca de estragos causados pela "pevide" nas aves de capoeira.

-Chamo-me Vidal e estou a convocar uma reunião sindical - disse

ele quando a realidade se impôs ao tema dos frangos.

Saímos do mercado e, um pouco mais tarde, sentados numa praça,

pedi-lhe que me mostrasse um dos panfletos. Era uma folha reproduzida num duplicador manual, escrita com grossos caracteres de que

não percebi nada, porque desconhecia o idioma quíchua.

-São muito poucos os que sabem ler, mas não importa; a palavra escrita dá força, une - comentou Vidal.

O sol brilhava muito alto no céu, arrancava cintilações ofuscantes

do Pichincha ali perto, esmagava as sombras dos índios que passavam inclinados, carregando toda a espécie de volumes às costas.

-É o "huasipungo" da cidade. Não têm terras e carregam qualquer coisa por um pedaço de pão. vivem e morrem na rua - comentou ele.

-Disse-me que se chama Vidal. Qua mais? - lembro-me de lhe ter perguntado.

-Vidal e nada mais, basta isso. Quer vir à reunião?

Ao falar, os erres saíam-lhe da boca como se os mastigasse, e assim, com o seu sotaque serrano, foi-me contado pormenores do trabalho difícil de um sindicalista camponês. A Federação dos Camponeses de Imbabura nascia e era esmagada, tornava a nascer e repetia-se o mesmo. Vidal trazia num bolso o carimbo de borracha com o número de registos que legalizava a organização sindical e um atado de fichas de filiação em branco. Noutro bolso guardava um recorte tirado da Ecrán, uma revista de cinema.

-Sabe quem é? - perguntou-me, mostrando-me a formosa e enigmática mulher.

-Greta Garbo - respondi.

-Ela protege-me. Sou ateu, mas é sempre bom ter alguém a quem a gente se esconde - garantiu Vidal.

Caminhámos várias horas sob a noite imensa do meio do mundo, até que chegámos ao lugar da reunião. Havia umas vinte pessoas que imediatamente partilharam connosco tudo o que tinham: batatas enrugadas e uns bochechos de puro, uma feroz aguardente de cana. Vidal falava com eles em quíchua, e a única palavra que eu apanhava era "companheiros". Os camponeses diziam que sim com a cabeça, faziam perguntas: percebi pelo tom das vozes que discutiam, e terminaram abraçando-se uns aos outros como os míticos conspiradores que se preparam para tomar o céu de assalto.

Vidal. Acompanhei-o a muitas outras reuniões clandestinas. Até traçámos juntos um programa mínimo de alfabetização, enquanto ele me guiava pela história do mundo andino e me ensinava quíchua. Vi-o eufórico e vi-o triste, cantando "sanjuanitos" ou moído de pauladas no hospital de Ibarra depois de uma armadilha preparada pelos senhores da terra. Vivi na sua casa, e a sua família foi a minha família.

Quando em 1979 deixei o Equador, percebi que me afastava de um amigo, de um companheiro insuperável, e lamentei não conhecer o seu nome completo para lhe poder escrever,

A vida levou-me por muitos caminhos, nunca esqueci Vidal, e a própria vida, essa que une os lixados deste mundo, entregou-me há umas semanas um presente formidável: numa fotografia publicada num jornal  equatoriano que estava a ler via Internet, aparecia o meu amigo, com o Pichincha ao fundo, a falar a um grupo de camponeses na inauguração de uma cooperativa. Por baixo dizia-se: "Vidal Sánchez, dirigente sindical..."

Um homem chamado Vidal. Vidal Sánchez. Brecht tinha razão quando escreveu: "Há homens que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis."

 

 

 

Isto é produção massiva de Lisboa

 

Entrevista de Joana Gorjão Henriques a António Brito Guterres, 20/05/2016, in Público

 

António Brito Guterres, 37 anos, investigador em estudos urbanos

no DINAMIA do ISCTE - IUL (Centro de Estudos sobre a Mudança

socio-económica e o Território), geriu e coordenou projectos sociais

em diversas zonas da Grande Lisboa. No ano passado, apresentou 

uma TEDx Talk em que comparou o número de visualizações no YouTube de alguns músicos dos subúrbios com as de artistas do circuito “oficial”, mostrando a cidade que escapa às políticas públicas, aos agentes, aos media. Foi ele quem nos levou até Loreta, em Mira Sintra, Primero G, na Arrentela, Juana na Rap, em Monte da Caparica, Nininho Vaz Maia,

no bairro da extinta Curraleira, Mynda Guevara, na Cova da Moura, Deejay Telio e Deedz, no Vale da Amoreira.

 

Como podemos ler o que se está a passar na Grande Lisboa

através da música?
-Existe uma dissociação entre as representações destes territórios – representações que determinam como se gere e como se governa,

que determinam as políticas públicas – e aquilo que realmente são. 

A música e as formas contemporâneas e orgânicas que as pessoas têm

de consumir e produzir cultura nestes territórios permitem-nos ler

o próprio território. Lisboa tem uma grande divisão. Raramente pensamos na escala de uma cidade de fluxos, de gente a mexer-se,

e são três milhões de pessoas. Normalmente, temos a noção de uma escala curta em que toda a gente se conhece. Isso tem a ver com a forma como a cidade foi construída ao longo dos tempos, por vagas de migrações. Só mais tarde, quando se começa a pensar em políticas

e realojamentos – e isso coincide com a transição do sector secundário para o terciário –, é que surge a classificação dos bairros como desafiantes, preocupantes, habitados por pessoas desempregadas,

com Rendimento Social de Inserção, imigrantes, e com todo o tipo

de carimbos. 

A música que se expressa neste território, contemporânea da Grande Lisboa, e territorializada, tem a ver com o espaço paroquial que

as pessoas criam entre elas, e por isso o que está na reportagem é muito territorializado – não fomos a um bairro do centro de Lisboa, o espaço

de produção não é um apartamento alugado. 

Um sítio que está isolado, barrado, cadastrado e fronteirado (...) cria,

por dentro, estas necessidades de expressar certas contradições

e de procurar pontos de encontro.

 

O que quer dizer com territorializado?
-A linguagem que surge dessas músicas, e o que expressam taxativamente, tem muito a ver com o território e com esta construção

de Lisboa em que as pessoas ficam enroladas em sítios, quer sejam

os que vêm para a cidade e constroem barracas à sua medida, quer seja fruto da contingência da política que diz ‘vais morar para aqui ou para ali’. E a música aí tem um papel diferenciado: funciona como defesa cultural e ancestral. Há muitas formas de produção musical que têm

a ver com essa necessidade (as batucadeiras, grupos de funaná...)

de manter viva a tradição cultural. Mas também funciona muitas vezes como catarse e expressão do dia-a-dia, das dificuldades e das coisas boas, da contingência que faz com que esses bairros existam, de se estar ali segmentado, segregado. No rap isso é mais notório – em ultima análise, se não conseguir tocar instrumentos, consigo sempre cantar. Todas as pessoas desta reportagem têm essa história no princípio de não terem uma estrutura de produção. Depois há a capacidade que têm de colarem novos mundos. Um sítio em que há portugueses de vários sítios, pessoal cabo-verdiano, pessoal de outros países – um melting pot, porque é um sítio que está isolado, barrado, cadastrado e fronteirado –, cria, por dentro, estas necessidades de expressar certas contradições e de procurar pontos de encontro. 

 

Qual é o impacto destes artistas? 
É interessante ver o impacto enorme que estes intérpretes têm – tendo

em conta que estão no YouTube de forma independente, e sem os meios de produção – quando comparados com artistas do contexto nacional que são promovidos, têm agenciamento, vão a rádios, à televisão… Começa-se a reflectir: isto tem uma grande força em Lisboa,

um grande power. O rap, os kuduristas e o afro house são uma mistura, muitas vezes só possível em Lisboa, de uma série de culturas que esta cidade tem, já com meios de produção do mainstream, com influência dos Estados Unidos. Se repararmos, o Loreta tem milhões de views e faz um rap cantado em crioulo; o Deejay Telio tem uma música, Que safoda, com milhões de visualizações – já não é a catarse do rap mas outra coisa. Ele usa os meios de produção de uma sociedade informatizada,

o computador, os samples, mas depois tem o slang de várias convivialidades de Lisboa, várias tonalidades que podem ser kuduro, tarrachinha ou reggae. Ou o caso do Nininho, que vem de um contexto cigano, canta à cigano, mas cuja música também vem do que o cerca: mistura kizomba e pop portuguesa com o lado cigano.

É engraçado isto existir: evidencia a potência, a capacidade de auto-organização, o facto de as redes sociais permitirem criar circuitos no donut, na periferia. É bom o pessoal perceber que se pode auto-organizar, que consegue dar a cara. Por outro lado, permite-nos ler

a cidade a partir do potencial que isto tem, da capacidade de congregação, de encontro, de resistência e resiliência. Tudo isto é feito autonomamente, sem acesso a meios de produção da parte das escolas e das políticas de educação sociais e culturais, sem espaços de legitimação próprios qualificados. 

 

Isso também depende de quem define o quê: muitos destes músicos são blockbusters mas não são visíveis para toda a gente porque não estão num circuito que legitima…
Mas o aglutinar de comunidades já é tanto que dá esta escala. Dá que pensar. Se formos falar destas produções artísticas com o departamento de cultura do poder autárquico ou a nível nacional, elas são vistas como trabalho social. Posso ter numa esquina da Grande Lisboa a associação cultural, um grupo de cante alentejano, um conservatório de dança,

um grupo de vira do Minho, outro da cultura saloia e isto conta como política de cultura para o município e a nível nacional, tem uma visibilidade política e faz parte do pensamento cultural desse município. Mas uma produtora de kuduro, um espaço de dança de hip-hop,

um estúdio de rap são considerados trabalho social. 

Aparece [mais música] porque não há outras oportunidades.

Não podemos olhar para isto e pensar: ‘o pessoal do bairro vai ser músico’. O acesso à cultura é importante para criar ferramentas

e linguagens que ajudem uma pessoa a ser um bom amigo, um bom mecânico, etc. – isso é universal. Mas estas pessoas não têm as mesmas oportunidades que os outros. Onde estão os artistas plásticos?

Os produtores de teatro? Os escritores, os realizadores? Não há. 

A verdade é que a maneira como as pessoas fazem cultura nestes sítios

é muito orgânica: não fazem workshops, auto-organizam-se, fazem

o estúdio no seu quarto e isso permite haver esta novidade: isto é produção cultural criativa, massiva, da cidade de Lisboa. 

 

As alternativas dependem dos meios de produção…
… e das políticas. Através das músicas conseguimos perceber claramente que o principal contacto que têm com o Estado é com a polícia. Pensar-se-ia que o lugar natural e transversal a tudo seria a escola. Mas a realidade está tão bem segmentada que muitos professores não compreendem os alunos. Ou então são os currículos que fazem parte da mesma esquizofrenia: vamos falar como se o mundo fosse A, mas afinal é B. Nas narrativas todas da cidade, e há imensas, há uma que é hegemónica e abafa as outras. 

 

Estes músicos fazem música para as suas comunidades, que

são enormes, mas têm um lado cosmopolita, vão actuar

em outros países. 
Isto não é música underground. Claro que há aspectos deste tipo de música que são underground. Olhando para a cidade construída por baixo e para a diversidade de pessoas que nela existem, o Loreta é um artista popular de Lisboa, o Deejay Telio também, e saem do cosmos e vão a sítios cosmopolitas. O Nininho faz parte destas novas estruturas da cidade: é cigano mas não é, o lado de fora diz que ele é cigano, o lado de dentro diz que ele não canta à cigano, mas também não nega que ele é cigano. 

A possibilidade de esta cidade invisível ser legitimada pela cidade vigente não deixa de confirmar uma relação de poder de uma sobre a outra.
Mas a questão é essa, a cidade deve ser construída na base com as pessoas todas. Por outro lado, não quero alocar uma excentricidade absoluta: uma cidade feita de imigrantes tem necessariamente formas de estar e de produzir tão diferentes que é difícil de apanhar tudo – e nem é isso que se deseja, é impossível, vai-se sempre deixar alguém de fora. Vamos classificar e dizer ‘a cidade invisível é que é’, 'isto é que é a cidade'? Não. O que se trata aqui é de olhar para a escala que estas coisas têm e usá-las para ajudar a ler o território, pensando como reproduzem uma série de políticas e hegemonias económicas. 

 

16

 

*As Cidades Contínuas. 5.

 

Italo Calvio, in Cidades Invisiveis

 

 

Para te falar de Pentesileira teria de começar por te descrever a entrada na cidade. Certamente imaginas ver elevar-se da planície poeirenta

um recinto de muralhas, aproximares-te passo a passo da porta, vigiada pelos fiscais da gabela que já olham de viés para as tuas bagagens. Enquanto não entrares estás fora dela; passas por baixo de uma arquivolta e encontras-te dentro da cidade; circunda-te a sua compacta espessura; entalhado na pedra há um desenho que se te revelará

se seguires o seu traçado todo em bicos.

Se acreditares nisto, enganas-te: em Pentesileia é diferente.

Avanças durante horas e não é claro se já estás no centro da cidade ou ainda fora. Tal como um lago de margens baixas que se perde em inúmeros pauis, assim Pentesileia se expande por milhas e milhas em torno de uma sopa de cidades diluída na planície: casa lívidas de costas viradas umas para as outras no meio de matagais, entre paliçadas de tábuas e telhados de chapa. De vez em quando nas bermas da estrada um adensar de construções de magras fachadas, altíssimas ou baixíssimas como um pente desdentado, parece indicar que a partir daí as malhas da cidade irão apertar-se. Mas continuas e encontras mais terrenos vazios, depois um subúrbio enferrujado de oficinas e armazéns, um cemitério, uma feira com carrosséis, um matadouro, metes por uma rua de lojas macilentas que se perde entre manchas de campo pelado.

As pessoas que se encontram, se lhes perguntares: - para Pentesileia? - fazem um gesto largo que não sabes se quer que dizer: “Aqui”, ou: “Mais além”, ou “tudo isto à volta”, ou ainda: “Para o outro lado”.

-A cidade - insistes em perguntar.

-Vimos cá trabalhar todos os dias - responder-te-ão uns e outros: - voltamos cá para dormir.

-Mas a cidade onde se vive? - perguntas.

-Deve ser para ali - dizem, e uns erguem o braço obliquamente na direcção de uma incrustação de poliedros opacos, no horizonte, enquanto outros indicam para trás das tuas costas o espectro de outras  cúspides.

-Então já passei por ela sem dar por isso?

-Não, experimenta continuar a andar em frente.

Assim prossegues, passando de uma periferia a outra, e chega a altura de sair de Pentesileia. Perguntas o caminho para sair da cidade; voltas a percorrer a enfiada dos subúrbios disseminados como um pigmento leitoso; cai a noite; iluminam-se as janelas, ora mais raras ora mais densas.

Se oculta em qualquer bolsa ou ruga destes transbordantes arredores existe uma Pentesileia reconhecível e recordável por quem lá tiver estado, ou se Pentesileia é só a periferia de si própria e tem o seu centro em toda a parte, já renunciaste a compreende-lo. A pergunta que agora começa a roer-te a mente é mais angustiante: fora de Pentesileia existe um fora? Ou, por mais que te afastes da cidade, limitas-te a passar, limitas-te a passar de um limbo a outro e nunca mais conseguirás sair?

 

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